Dia 19 de outubro, propus um desafio aos leitores da newsletter do Ninho de Escritores: escrever um parágrafo de até 60 palavras narrando em terceira pessoa uma cena em que um personagem se emociona.
A Lia Maia aceitou o desafio novamente:
Lentamente se avolumou dentro dele o sufocar do pânico quase palpável, achou até que poderia vomita-lo se quisesse. O ar faltava obrigando-o a respirar através dos lábios e uma onda ardente de lágrimas estava prestes a vencê-lo finalmente.
Talvez devesse apenas saltar no poço onde Blizzard lançara o homem, sim, com certeza a morte seria a melhor saída àquela altura.
Neste parágrafo da Lia, quero te convidar a pensar sobre algumas palavras. O que significa algo ser “quase palpável”? Quando algo é quase, é algo que ainda não chegou a ser, que por pouco não é.
Tá, e qual é o problema de algo ser “quase palpável”?
É possível entender a ideia de que o pânico, de tão intenso, mais um pouco poderia até ser agarrado. Mas algo quase palpável é algo que não é palpável. Não existe algo mais palpável, menos palpável. Ou é, ou não é. Portanto, não há como ser “quase”.
Muitas vezes colocamos palavras no texto sem perceber o que elas significam e sem notar que poderíamos encontrar outras maneiras de dizer o que queremos, inclusive de modo mais preciso.
O texto enviado pela Lia tem uma peculiaridade: não se trata de um, mas de dois parágrafos. Isso nos permite pensar sobre o momento adequado de mudar parágrafos durante a narrativa. Essa não é uma decisão arbitrária, que fazemos simplesmente porque já estamos escrevendo demais.
A mudança de parágrafos ajuda a criar o ritmo da história e o impacto do texto.
Certa vez, um escritor defendeu que gostava de frases e parágrafos curtos.
Porque eram ligeiros, intensos.
Rápidos como socos.
Na cara do leitor.
Se a intenção é atacar o leitor, beleza, vai e faz assim. Parágrafos muito longos causam um efeito contrário, de enfado. Se vemos um livro com parágrafos gigantescos, presumimos que ele é cansativo.
Tudo bem, o que isso tem a ver com o parágrafo da Lia? Quando ela começou um segundo parágrafo no trecho aqui comentado, eu não encontrei um motivo para essa transição. Em geral, a troca de parágrafo vai indicar uma mudança maior do que a do ponto final. Ou seja, muda o tempo, muda o lugar, muda a situação. No caso do parágrafo, ele apresenta uma frase que é uma constatação, um pensamento que decorre dos anteriores.
“Ah, mas não pode?”
Pode, especialmente se a ideia for causar um efeito de impacto. Porém, se a ideia é impacto, precisamos lembrar que uma frase longa causa menos impacto que uma frase curta. A frase que a Lia escreveu tem 22 palavras. A frase que usei como exemplo, no parágrafo anterior (“Ah, mas não pode?”) tem quatro palavras.
Um último comentário para fechar a leitura crítica de hoje: que legal a técnica que a Lia utilizou nesta última frase! Trata-se do discurso indireto livre. Para explicar do que se trata, antes preciso falar dos discursos direto e indireto.
O discurso direto é quando um personagem está manifestando sua voz diretamente na narrativa. Isso geralmente acontece entre aspas ou depois de um travessão. Por exemplo: “Renato falou ‘Eu odeio Paulo!'”.
O discurso indireto é quando o que o personagem diz é mostrado na narrativa, mas sem utilizar as palavras exatas. Algo como: “Renato falou que odeia Paulo”.
O discurso indireto livre, essa técnica linda, empresta ao personagem o poder do narrador. Quando Lia escreveu “sim, com certeza a morte seria a melhor saída àquela altura”, quem estava falando não era mais a figura mágica do narrador, mas sim o personagem que estava vivendo aquela tensão.
Esse é um recurso estilístico bastante avançado, mas devemos tomar cuidado para não encher o texto com ele. Como tudo na escrita, excessos fazem o texto perder a força.
Espero que estas sugestões que ofereci ao texto da Lia possam te ajudar na escrita das tuas próprias histórias. Os comentários feitos neste texto não têm a intenção de serem exaustivos, mas sim de destacar algumas das questões que podem ser melhoradas.
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[…] No início do parágrafo, temos uma fala. Tipicamente, o discurso direto é indicado pelo uso de travessão ou de aspas (um ou outro, nunca os dois ao mesmo tempo). Há algumas situações em que é possível escapar dos travessões e das aspas, como no discurso indireto e no discurso indireto livre, sobre os quais falei em outra leitura crítica. […]