Dia 26 de outubro, propus um desafio aos leitores da newsletter do Ninho de Escritores: em até 60 palavras, escrever na terceira pessoa um parágrafo sobre a experiência de comer algo ruim.
A Priscila Pacheco participou:
Zezinho estava faminto e devorou o primeiro pedaço de torta que encontrou na mesa. Imediatamente sentiu um gosto horrível, mas não conseguiu impedir que o alimento fosse engolido. Arrependido, Zezinho desejava vomitar. Correu para o banheiro e encontrou a mãe que brigou por ele ter comido a torta estragada que ela iria jogar no lixo quando foi atender ao telefone.
Neste parágrafo, o que merece destaque é o uso que fazemos de certas palavras em detrimento de outras. Mais do que escolher as palavras certas, escrever é retirar as palavras erradas.
Isso faz o trabalho do escritor se tornar bastante divertido. A pergunta principal que precisa ser feita, palavra após palavra, é: escolhi a melhor palavra para o que quero dizer?
Uma das principais sugestões para melhorar qualquer parágrafo é trocar verbos sem graça por verbos fortes. Um verbo é sem graça quando se apresenta de forma comum, sem muita energia.
Talvez seja mais fácil dar um exemplo de verbo forte: “devorar”.
Devorar é muito mais do que comer. Devorar implica em comer com velocidade, com fome, com desejo, com lascívia, com pressa, urgência, intensidade. Quando Priscila escreve que Zezinho devorou um pedaço de torta, temos uma imagem muito mais poderosa e completa do que se ela tivesse escrito que ele “comeu” ou “mordeu”.
A vantagem dos verbos fortes é que eles podem nos ajudar a cortar palavras. Quando “Zezinho estava faminto e devorou”, o ato de devorar é tão forte que estar faminto torna-se secundário, é uma explicação desnecessária, quase implícita no devorar.
Enquanto “devorar” é um verbo forte, “sentir” é praticamente um verbo proibido na literatura. Assim como Chuck Palahniuk sugere remover verbos de pensamento, eu te convido a remover os verbos de percepção.
Ué, como assim?
Este é um truque mágico do ponto de vista na história. Mesmo em terceira pessoa, às vezes seguimos apenas um personagem. É o caso neste parágrafo. Se estamos seguindo apenas um personagem (em vez de uma narração onisciente ou que pule de cabeça em cabeça), tudo o que acontece passa pelo filtro da percepção dele.
Ou seja: se há um gosto ruim, foi porque Zezinho o sentiu. Se a gente sabe que foi porque ele sentiu, não precisamos dizer que ele sentiu. Quando escolhemos as palavras que ficam e que saem de um texto, remover o óbvio é uma boa prática para limpar as frases.
“Sentiu que”, “olhou para a direita”, “ouviu os gritos”. Tudo isso vem do personagem que detém o ponto de vista, então pode ser integrado à narrativa.
“Zezinho devorou… Tinha um gosto horrível”.
Ou “Zezinho devorou… O gosto lembrava leite com sal” (ou qualquer outra invenção bizarra para mostrar melhor o gosto, pois “horrível” é uma palavra abstrata e, portanto, sem graça. O que é horrível para um não é para outro e dificilmente conseguimos explicar o que queremos dizer simplesmente escrevendo “horrível”.
Já que mencionei o Palahniuk e os verbos de pensamento, vamos tirar aquele “desejava vomitar”? Ninguém deseja vomitar. A gente tem ânsias, o corpo se contrai, a comida volta, mas desejar vomitar é outra história.
A última frase precisa de alguns cuidados.
“Correu para o banheiro e encontrou a mãe que brigou por ele ter comido a torta estragada que ela iria jogar no lixo quando foi atender ao telefone.”
Ele encontrou “a mãe que brigou por ele ter comido…”. Enquanto isso, a mãe que lavava o sofá ficou feliz? O que, esse pronome mágico (e irritante, porque entra em tudo que é lugar onde não foi chamado), muda todo o sentido da frase se houver ou não uma vírgula antes dele.
“A mãe que brigou” é uma de muitas mães. É “o carro que não ligava”, em oposição a outros carros. É “a casa que comprei”, em detrimento a outras que deixei de comprar.
Havendo uma vírgula antes do “que”, tudo muda, porque vira uma explicação. “A mãe, que brigou” é uma só e brigou com o filhote. “O carro, que não ligava” é uma situação estranha, não uma característica do veículo. “A casa, que comprei” é uma explicação sobre a casa.
O pessoal do Brasil Escola explica essa diferença aqui.
Para fechar esta leitura, pergunto: como podemos melhorar esta última frase para que ela não fique tão grande? Que tal quebrá-la em frases menores, ou explicar menos o que a mãe estava fazendo e mostrar mais seu espanto?
Espero que estas sugestões que ofereci ao texto da Priscila possam te ajudar na escrita das tuas próprias histórias. Os comentários feitos neste texto não têm a intenção de serem exaustivos, mas sim de destacar algumas das questões que podem ser melhoradas.
Caso queira ver um parágrafo teu ser comentado aqui no Blog do Ninho de Escritores, assina a newsletter e participa dos desafios. Também atendo de forma personalizada, completa e individual por meio do Voo Solo.