Comecei a ler Nu, de botas, de Antonio Prata. O livro é tão encantador que, já nas primeiras páginas, miro de soslaio meu par de botas no canto do quarto; não fosse inverno, aceitaria o título-convite.
Um bom texto convida a irmos além das páginas, a lembrarmos de nossa vida e a imaginarmos como seria o universo se aquelas palavras existissem de fato. Porque elas existem.
Destaco um trecho que me tocou. Antonio narra sobre os anjinhos e diabinhos que nos sussurram ao pé do ouvido e a tentação de mijar fora do penico da Turma da Mônica:
Caso ouvisse os impulsos aventureiros e ignorasse os limites do peniquinho, talvez me atrevesse a saltar a rampa grande de skate aos nove, seria atacante e não goleiro no primário; perderia a virgindade antes do primeiro colegial, quem sabe fosse de carona até a Patagônia aos vinte? Se, no entanto, dedicasse meus parcos mililitros à Turma da Mônica e ao sorriso da mamãe, deixaria a rampa grande para os maiores e me contentaria em ir e vir com meu skate pela garagem, toparia ser goleiro nos campeonatos já que ninguém o faria e o professor solicitaria um voluntário; perderia a virgindade só nos estertores da adolescência e, dali em diante, preferiria os ácaros da poltrona à poeira da estrada.
Em um parágrafo, o escritor explora como uma decisão pequena, de todo insignificante, na verdade explora um universo de definições que se seguirão para toda a vida.
Depois deste trecho, baixei o livro e refleti. Aquele não seria, de fato, momento definidor de uma existência futura, mas sim resultado de definições anteriores. Não havia escolhas para o pequeno Antonio à frente do peniquinho; apenas resultados de quem ele já vinha sendo. Se fosse diferente, ele já seria diferente – e não se tornaria assim.
A marca de um bom texto é a presença que perdura, como um sabor que nos encanta ou uma memória que desejamos guardar para sempre.
Aliás, é assim que são definidos os clássicos: como os sobreviventes, aqueles que se conservam para muito além das primeiras vidas e memórias que influenciaram.
Por que escritores devem ler bons textos?
Quem vive e ensina escrita criativa tem o costume de trabalhar sobre o erro. Se não está claro, mexemos. Se não está conciso, reduzimos. Se não está sonoro, arrumamos.
Mas saber o que é ruim não ensina o que é bom.
Para o escritor, o bom texto faz mais do que apenas encantar: ensina. Leio Antonio Prata e aprendo com suas escolhas, absorvo as palavras utilizadas e procuro as que não estão ali.
Ler muito é um excelente conselho; ler coisas boas é um conselho ainda melhor.