Blog : Ninho de Escritores

Leitura crítica #8

Dia 19 de outubro, propus um desafio aos leitores da newsletter do Ninho de Escritores: escrever um parágrafo de até 60 palavras narrando em terceira pessoa uma cena em que um personagem se emociona.

O Felipe me enviou um parágrafo:

Pensativo em um ponto de ônibus encontrava-se Jaime. Belo Horizonte era exatamente como ele havia previsto. Parada, suja e cinza. Mas o motivo que o trouxera ali não era a cidade. Depois que Maria o deixara, sua vida virou uma bagunça. Partiu então atrás do perdão de sua amada, mas recebeu recusa pelos vícios. Ali mesmo, sozinho, Jaime chora.

A primeira frase do parágrafo de Felipe nos oferece uma oportunidade para pensar sobre o modo como organizamos as informações em nossos textos. Quando começamos a ler qualquer história, também começamos a tentar entender o que está acontecendo.

“Pensativo”, começa a frase. Poxa, legal, alguém está pensativo. “Em um ponto de ônibus”, a frase continua. Seja lá quem está pensativo, está em um ponto de ônibus. “Encontrava-se Jaime”, a frase termina. Ah, descobri quem era… O que ele estava fazendo, mesmo?

A ordem direta dos elementos de uma frase é sujeito + predicado, ou seja, quem faz a ação, seguido da ação e o objeto desta ação. Nossa compreensão acontece mais rápido quando as frases seguem esta ordem.

“Jaime encontrava-se pensativo em um ponto de ônibus”.

Mais fácil e rápido de entender, não é mesmo?

O que acontece é que geralmente confundimos linguagem rebuscada com alta literatura, e isso é um problema para o leitor. Um texto fácil de ler pode ser profundo e instigante – para falar a verdade, os textos mais difíceis de escrever são aqueles fáceis e profundos.

Outra coisa que torna um texto mais fácil, profundo e instigante é a clareza das informações. O leitor quer entender o que está acontecendo e também por que está acontecendo.

“Depois que Maria o deixara, sua vida virou uma bagunça”, o texto diz, mas o que significa algo virar uma bagunça? Ele começou a beber? Ele já bebia? Ele tentou se matar? Ele perdeu o emprego? Ele deixou a cama desarrumada? Eu, leitor, não sei a resposta para essas perguntas, por isso vou inventar minha própria história. Isso até pode ser legal, mas em algum momento futuro o texto vai contradizer o que eu imaginei, e aí eu ficarei chateado.

A solução para isso é oferecer alguns contornos que limitem as interpretações possíveis.

O que mudou na vida de Jaime após a partida de Maria? Mostra como a vida dele se tornou uma bagunça, em vez de dizer que se tornou uma bagunça. “Bagunça” é genérico demais.

O mesmo vale para “os vícios”. Que vícios? Cigarro, bebida, crack, jogo, pornografia?

Quando Jaime “Partiu então atrás do perdão de sua amada, mas recebeu recusa pelos vícios”, o que exatamente aconteceu neste intervalo de tempo? E quão grande ele é? Observa que a história começou num momento, na parada de ônibus, voltou ao passado para falar da perda e tentativa de reconquista, e depois avançou para o presente.

Essas idas e vindas no tempo costumam confundir o leitor, especialmente quando acontecem no mesmo parágrafo.

Falando em tempo, recomendo cuidado com os tempos verbais. O parágrafo começa no pretérito imperfeito, criando os contornos do que está acontecendo. Depois vai mais para o passado, usando o pretérito perfeito. Portanto, o que aconteceu já está resolvido, finalizado. Mas então o parágrafo finaliza no presente do indicativo, ou seja, ele estava na parada de ônibus, mas chora num outro momento – pois toda mudança de tempo verbal indica necessariamente uma mudança no tempo em que as coisas acontecem ou aconteceram.

Minha sugestão para melhorar o parágrafo é trazer as lágrimas de Jaime para antes das lembranças sobre Maria. Ele pode chorar olhando algum objeto ou lugar que o faça lembrar de Maria, e daí teremos motivos para ir mais a fundo no passado e recuperar suas memórias.

:)

Espero que estas sugestões que ofereci ao texto do Felipe possam te ajudar na escrita das tuas próprias histórias. Os comentários feitos neste texto não têm a intenção de serem exaustivos, mas sim de destacar algumas das questões que podem ser melhoradas.

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