Na newsletter do dia 12 de outubro, mandei um desafio para meus leitores: escrever um parágrafo de até 60 palavras que mostrasse o momento em que uma pessoa se apaixona pela outra.
A Carolina Cabral me enviou dois parágrafos, que somaram 123 palavras, então selecionei apenas o primeiro:
Antes mesmo dele tirar a sua roupa ela já estava nua… Foi assim que ela se sentiu quando seu olhar cruzou com o dele. Naquele instante, um arrepio desconcertante a dominou e ela despiu-se de qualquer estratégia de conquista. No simples cumprimento trocado, seus estados de alma sintonizaram.
O parágrafo da Carolina apresenta uma das minhas questões favoritas: a traição dos pronomes. Leia de novo a primeira frase e me responda se a roupa que ele tira é a dele ou a dela. Se tu respondeu que é a dela, tu acertou. Se tu respondeu que é a dele, tu também acertou.
Eu li e pensei “nossa, ela se entregou antes do cara tirar a roupa”. Eu poderia ter lido “nossa, ela estava entregue antes mesmo de ficar nua” (essa é a leitura desejada pela escritora, suspeito).
Isso acontece porque pronomes possessivos são promíscuos e se oferecem para qualquer um. O fato de a próxima frase solucionar a ambiguidade é irrelevante: eu já fiz uma interpretação e fui obrigado a voltar e reler, já estou chateado porque me senti enganado.
Então como a gente melhora essa frase?
Se fosse a roupa dele: “Antes mesmo de ele se despir, ela já estava nua”.
Como a roupa é dela: “Antes mesmo de ser despida, ela já se sentia nua”. “Ser despida” indica que é outra pessoa que tirará a roupa dela. “Se sentia” resolve um outro probleminha, que é o fato dela não estar nua e sim sentir-se entregue, aberta, sem segredos. Quando eu li, pensei que quem ia tirar a roupa era o cara porque “ela já estava nua”.
(A propósito, não gosto de ficar corrigindo gramática, mas observa que eu coloquei uma vírgula antes de “ela”, pois a frase está deslocada da ordem original, que seria “ela já estava nua antes mesmo de ele tirar sua roupa”.)
Se nós fizermos essa pequena modificação na frase, a segunda também precisa mudar. Isso é bom, pois ela pode ficar mais descritiva: “Seus olhares se cruzaram e um arrepio desconcertante a dominou”.
Já usamos o verbo “despir” (na minha versão), então vamos procurar uma alternativa para “ela despiu-se de qualquer estratégia de conquista”? Eu amo/sou (ah, Orkut, bons tempos!) o Dicionário de Sinônimos, e foi lá que achei “abandonar” como sinônimo de “despir”.
“Naquele instante, ela abandonou qualquer estratégia de conquista”.
Para fechar o parágrafo, seria legal continuarmos dentro dela (juro que não foi intencional esse trocadilho infame – mentira, foi sim porque tudo na escrita é intencional). O que a Carolina fez, porém, foi falar dos dois ao mesmo tempo, usando os seus poderes de narradora onisciente. Contudo, nós estamos acompanhando a entrega da personagem mulher. Fechar o parágrafo com os dois se conectando diminui drasticamente o efeito da cena.
Que tal mostrar apenas ela se entregando? Além de acrescentar intensidade, nos deixa na dúvida se o cara também se entregou.
Espero que estas sugestões que ofereci ao texto da Carolina possam te ajudar na escrita das tuas próprias histórias. Os comentários feitos neste texto não têm a intenção de serem exaustivos, mas sim de destacar algumas das questões que podem ser melhoradas.
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