Dia 26 de outubro, propus um desafio aos leitores da newsletter do Ninho de Escritores: em até 60 palavras, escrever na terceira pessoa um parágrafo sobre a experiência de comer algo ruim.
A Camila Costa encaminhou um parágrafo:
Só uma colher, ele disse, como se pudesse evitar o que viria a seguir: era como se toda a terra do mundo tivesse sido armazenada naquele creme roxo, e foi repentinamente despejada nas papilas gustativas; aquilo não era doce, tampouco azedo; aquela confusão em sua boca o atormentava tanto, que nem uma careta foi possível. Açaí: curta palavra, longa tortura.
O parágrafo da Camila brinca com o humor ao trazer uma reação hiperbólica ao sabor do açaí. O modo que ela escolheu para fazer isso foi manter quase todo o parágrafo em uma única frase, estendendo a descrição gustativa antes de revelar do que se trata.
Este é um recurso comum no humor: levar o leitor pela história e só revelar a verdade no final, em geral uma verdade mais simples ou inusitada do que se poderia esperar.
O encerramento deste parágrafo cumpre bem o efeito desejado, especialmente no jogo de poucas palavras (“Açaí: curta palavra, longa tortura”). Fosse uma frase maior e menos pausada, o efeito se perderia na quantidade.
No início do parágrafo, temos uma fala. Tipicamente, o discurso direto é indicado pelo uso de travessão ou de aspas (um ou outro, nunca os dois ao mesmo tempo). Há algumas situações em que é possível escapar dos travessões e das aspas, como no discurso indireto e no discurso indireto livre, sobre os quais falei em outra leitura crítica.
Após acrescentarmos aspas no discurso direto, creio que é hora de pensarmos sobre a hipérbole. Faz diferença, neste pequeno trecho de 60 palavras, se é “toda a terra do mundo” ou se fosse apenas “terra”?
Em geral, quando não há diferença entre duas opções de escrita, eu prefiro a mais simples. Dizer que é toda a terra do mundo pode adicionar humor, mas qualquer pitada de terra já cumpriria o propósito de estragar uma colherada de açaí (ou qualquer outra comida, diga-se de passagem), portanto me soou desnecessário.
Caso fosse uma história maior, esta informação poderia me trazer conhecimento sobre o personagem e a maneira (hiperbólica) como ele vê o mundo. Isso poderia ser proveitoso, mas no parágrafo em questão, notei pouca diferença.
Por fim, há o trecho que diz “aquela confusão em sua boca o atormentava tanto, que nem uma careta foi possível”. A minha pergunta, ao ler esta parte, foi: por quê?
Quando leio opinião de outras pessoas (especialmente em histórias), quero compreender os motivos por trás das ideias. Por isso, me ajudaria muito uma pequena explicação. Exemplo: “aquela confusão em sua boca o atormentava demais; uma comida deveria doce ou azeda, não uma mistura dos dois”. Mesmo que de fato não explique nada, esse acréscimo de informação de diz como esse personagem vê a vida – e daí eu passo a ter algo do que concordar ou discordar.
Espero que estas sugestões que ofereci ao texto da Camila possam te ajudar na escrita das tuas próprias histórias. Os comentários feitos neste texto não têm a intenção de serem exaustivos, mas sim de destacar algumas das questões que podem ser melhoradas.
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