Dia 26 de outubro, propus um desafio aos leitores da newsletter do Ninho de Escritores: em até 60 palavras, escrever na terceira pessoa um parágrafo sobre a experiência de comer algo ruim.
O Fernando Amaral enviou um parágrafo para ser comentado aqui no Ninho:
Ela de cabeça baixa sem comer. Ele mastigando suinamente. A comida descia amarga e queimando. Pontadas como um enxame de abelhas no estômago. Tontura, suor frio, vistas turvas. Sentiu que ia apagar. A mulher levanta a cabeça. A última coisa que ele viu antes de morrer foi o sorriso da sua esposa e o olho roxo que lhe dera ontem.
O parágrafo do Fernando conta uma história inteira, com início, meio e fim. Temos dois personagens e acompanhamos as consequências das ações de cada um. Como um bom texto, parte do que precisamos saber não está escrito, mas é compreendido pelo subtexto.
Fernando poderia ter escrito que a mulher decidiu se vingar, que envenenou a comida, mas não foi necessário. Nós compreendemos porque é a explicação mais provável. Quando algo não está explicado no texto, o leitor vai preencher a lacuna com aquilo que acredita fazer mais sentido. É o caso da relação entre Bentinho e Capitu: a resposta não é dada por Machado de Assis, portanto, decidir se houver traição fica nas mãos de quem lê.
Para melhorar este parágrafo, sugiro um cuidado com o tempo.
Este cuidado se dá de duas formas. Em primeiro lugar, o tempo verbal do parágrafo deve ser coerente em todas as frases. Se a mulher “levanta a cabeça”, então o homem “vê antes de morrer”, pois ambas as ações estão acontecendo na mesma cena, no meio espaço e tempo.
Quando duas ações que deveriam se passar no mesmo espaço e tempo têm tempos verbais diferentes, o bom leitor fica confuso.
O segundo cuidado com o tempo diz respeito à ordem que utilizamos para apresentar ao leitor o que está acontecendo. Veja este exemplo:
Ele gritou de susto e se agarrou à namorada quando ouviu um barulho no beco.
O que acontece antes, o grito ou o barulho no beco? O barulho é o gatilho para o beco, então por que mostrar o grito primeiro e depois explicar por que ele aconteceu? Ao fazer isso, deixo de criar uma sequência fluida, indo e voltando na narrativa. Minha opinião é que esses “vai e vêm” podem atrapalhar a leitura.
No parágrafo do Fernando, a última frase nos explica o que está acontecendo. Antes de terminar o parágrafo, eu sei que o personagem masculino morrerá e o motivo é a última coisa que o escritor me oferece: o olho roxo da mulher.
A última coisa a ser oferecida é a peça final para a compreensão do texto. Daí pergunto: o que é mais importante de ser revelado por último, o motivo da morte ou o fato do personagem morrer?
Fernando escolheu mostrar o motivo. Essa é uma escolha que faz sentido, sabendo que o texto começou com a mulher, portanto se trata de uma história observada preferencialmente da perspectiva dela.
Eu sugeriria o contrário: começar o texto com ele, e fechar o texto com a realização mais perene de que a morte será a última coisa – de fato, um ponto final:
A mulher levanta a cabeça, no rosto um sorriso, apesar do olho roxo que ele lhe dera ontem. Ele entende e morre.
Outra possibilidade, um efeito diferente. Isso é brincar com a escrita: experimentar com as palavras em busca da combinação que causa o efeito mais próximo daquele que desejamos.
Espero que estas sugestões que ofereci ao texto do Fernando possam te ajudar na escrita das tuas próprias histórias. Os comentários feitos neste texto não têm a intenção de serem exaustivos, mas sim de destacar algumas das questões que podem ser melhoradas.
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