Dia 19 de outubro, propus um desafio aos leitores da newsletter do Ninho de Escritores: escrever um parágrafo de até 60 palavras narrando em terceira pessoa uma cena em que um personagem se emociona.
O Fernando Amaral aceitou o desafio com o parágrafo a seguir:
Gemeu a barriga, lágrimas pelo rosto. Suava as mãos. Litros de adrenalina pelo sangue, coração cavalgando desenfreado. Era ele: “Vou colocar o pipi em você agora, não vai doer”. Tinha 7 anos. Foi há 15 anos. Ele pediu uma cerveja no bar que ela trabalhava. Na volta, estourou a garrafa na cara dele e cortou sua garganta com o caco.
Algumas cenas são mais difíceis de construir do que outras. Sexo e o violência são dois tipos de cenas bem complicados de elaborar, e aqui temos um exemplo de ambos colocados juntos na forma de estupro.
Ou seja, achei ousada a tentativa do Fernando de fazer caber uma cena de estupro em 60 palavras.
Ousadia faz bem. É ousando que a gente supera nossos limites criativos.
Mas, ao colocar a cena de estupro dentro de uma outra cena, usando o recurso de flashback, o parágrafo acabou se tornando confuso.
O parágrafo começa, presumivelmente, no presente. A barriga está gemendo, as lágrimas correndo pelo rosto e as mãos, suando. Nós temos também os litros de adrenalina pelo sangue – entendo o uso de hipérbole, o exagero proposital, mas considerando que temos apenas uns cinco litros de sangue no corpo humano, litros de adrenalina parece hiperbólico até para os padrões das hipérboles, e considerando o quão tensa é a cena descrita, não sei se esse foi o melhor ponto para usar uma hipérbole, em vez de colocá-la a serviço da ansiedade, da tremedeira ou do sangue jorrando do pescoço do estuprador.
“Era ele”, diz o texto, que em seguida abre dois pontos. Opa, então é uma fala (o que se confirma pelas aspas) que também está acontecendo no presente. Afinal, não houve nenhuma indicação de troca de tempo. Mas quando eu descubro que alguém tinha sete anos e aquilo acontecera havia quinze, fico confuso.
Fico confuso porque não sei quem tinha sete anos, mas fico confuso especialmente porque se foi há quinze anos e ele pediu uma cerveja no bar em que ela trabalhava, como qualquer um dos dois poderia estar naquele cenário? Ah, então cai a ficha: foi um flashback.
Flashbacks são maravilhosos, mas também perigosos. Sem uma indicação clara de mudança temporal, o leitor não fica sabendo que o que está lendo aconteceu em outro tempo. É o caso da fala do estuprador, que só ganha contornos de passado depois que terminamos de ler o parágrafo. E isso não é positivo, pois obriga o leitor a reconstruir os entendimentos que já vinha construindo (de um jeito ruim).
O melhor jeito de lidar com a cena é estendê-la. Apenas 60 palavras é muito pouco espaço para fazer esse vai e vem temporal. Contudo, é possível voltar no passado e descrever o acontecido com maior detalhamento, se apoiando em um elemento que a faça entrar nas lembranças (digamos que o estuprador tem um bigode) e depois sair dela (o roçar do bigode, aquele mesmo bigode que ele ainda mantém).
Espero que estas sugestões que ofereci ao texto do Fernando possam te ajudar na escrita das tuas próprias histórias. Os comentários feitos neste texto não têm a intenção de serem exaustivos, mas sim de destacar algumas das questões que podem ser melhoradas.
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